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Fisco ignora leis para prejudicar o contribuinte

Para que possamos aferir da legalidade de tais normas, é necessário transcrevê-las.

Uma pequena indústria paulista foi recentemente multada pelo fisco estadual em mais de R$ 3 milhões porque entregou informações em arquivo digital com a falta de alguns registros, assim infringindo os artigos 250 e 494 do regulamento do ICMS e a multa foi capitulada no artigo 527, inciso VIII alínea “x” do mesmo regulamento.

Ainda conforme a autuação, o contribuinte deixou de observar as normas da Portaria CAT-32/96, que especifica como devem ser fornecidas aquelas informações.

Para que possamos aferir da legalidade de tais normas, é necessário transcrevê-las. O mencionado artigo 250 diz: “A emissão e a escrituração de documentos e de livros fiscais poderão ser efetuadas por sistema eletrônico de processamento de dados, na forma e condições estabelecidas pela Secretaria da Fazenda”.

O artigo 494, que o auto diz que foi também infringido pela indústria multada, afirma que: “Não podem embaraçar a ação fiscalizadora e, mediante notificação escrita, são obrigados a exibir impressos, documentos, livros, programas e arquivos magnéticos relacionados com o imposto e a prestar informações solicitadas pelo fisco: I — a pessoa inscrita ou obrigada à inscrição no Cadastro de Contribuintes e a que tomar parte em operação ou prestação sujeita ao imposto”.

A suposta base legal para tais normas regulamentares seria o artigo 67 da lei estadual 6.374, que regula o ICMS no estado de São Paulo, que determina: As pessoas sujeitas à inscrição no cadastro de contribuintes, conforme as operações ou prestações que façam, ainda que não tributadas ou isentas do imposto, devem, relativamente a cada um de seus estabelecimentos, emitir documentos fiscais, manter escrituração fiscal destinada ao registro das operações ou prestações efetuadas e atender às demais exigências decorrentes de qualquer outro sistema adotado pela administração tributária. § 1º — Os modelos de documentos e livros fiscais, a forma e os prazos de sua emissão e escrituração, bem como disposições sobre sua dispensa ou obrigatoriedade de manutenção, serão estabelecidos em regulamento ou em normas complementares. § 2º — A Secretaria da Fazenda pode determinar: 2 — a adoção e utilização, por parte dos contribuintes, de dispositivos de controle, inclusive eletrônicos, que visem monitorar ou registrar as suas atividades de produção, armazenamento, transporte e suas operações ou prestações, no interesse da fiscalização do imposto.

Como vimos, o artigo 250 do regulamento do ICMS, que se aponta como origem da multa, não obriga, mas apenas permite a escrituração eletrônica. A palavra ali empregada é poderá, não deverá.

Ora, a Constituição Federal tem como uma de suas cláusulas pétreas o princípio da legalidade estrita, isto é, ninguém é obrigado a fazer alguma coisa, a não ser que uma lei assim o determine. Decreto não é lei e mesmo a Lei 6.374 em nenhum momento se refere à obrigatoriedade do contribuinte dar informações por meio de arquivos eletrônicos sob determinadas formas.

Essas formas, aliás, são as estabelecidas por um mero ato administrativo, a Portaria CAT 32/96, que vem sofrendo inúmeras e repetidas modificações, gerando uma enorme insegurança e mesmo a impossibilidade de ser acompanhada com atenção pelo contribuinte de médio ou pequeno porte.

Além de contrariar o princípio da legalidade estabelecido na Constituição Federal, pois não existe uma lei que obrigue o atendimento daquela obrigação na forma descrita na portaria 32, a multa imposta ignora as normas do artigo 37 da CF, contidas no artigo 111 da Constituição do Estado e explicitadas na Lei Complementar (estadual) 939, de 3 de abril de 2003 em diversos artigos.

Essa lei, que institui o Código de Direitos, Garantias e Obrigações do Contribuinte no Estado de São Paulo diz: “Artigo 8º — A administração tributaria atuará em obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, interesse público, eficiência e motivação dos atos administrativos”.

Sobre a aplicação da multa, o artigo 527, inciso VIII alínea “x” do regulamento do ICMS diz que: O descumprimento da obrigação principal ou das obrigações acessórias, instituídas pela legislação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços, fica sujeito às seguintes penalidades: VIII — infrações relativas a sistema eletrônico de processamento de dados e ao uso e intervenção em máquina registradora, Terminal Ponto de Venda — PDV, Equipamento Emissor de Cupom Fiscal — ECF — ou qualquer outro equipamento; x) não fornecimento de informação em meio magnético ou sua entrega em condições que impossibilitem a leitura e tratamento e/ou com dados incompletos ou não relacionados às operações ou prestações do período — multa equivalente a 2% do valor das operações ou prestações do respectivo período, nunca inferior ao valor de 100 UFESPs.

Claro está que uma multa sem limite máximo apresenta evidentes efeitos confiscatórios e pode, caso não venha a ser repelida pelo Judiciário, implicar numa verdadeira sentença de morte para uma empresa.

No caso aqui comentado, ela ultrapassa o próprio capital social da empresa e mesmo o seu patrimônio líquido. Ou seja: se tiver que pagar a multa, a empresa e os empregos que gera simplesmente desaparecem, apenas por ter errado ou omitido uma informação que o fisco poderia apurar no próprio estabelecimento, mediante um levantamento fiscal.

O que mais evidencia o exagero, o absurdo e a absoluta ilegalidade da multa, é o fato de que o fisco, pretendendo interpretar o texto regulamentar, vem calculando-a sobre a soma das entradas e saídas do exercício (ano inteiro), apenas para obter números astronômicos.

Se a multa fosse legal — e evidentemente não o é — poderia ser calculada apenas sobre as operações de saídas que se relacionassem com operações econômicas, ou seja, operações sujeitas ao tributo.

Calculando a multa sobre as saídas (vendas, principalmente) e também sobre as entradas (compras) e até mesmo sobre devoluções e operação não sujeitas ao ICMS, o lançamento acaba por evidenciar indícios similares ao do crime de excesso de exação. Ou seja: cobra-se multa que se sabe indevida, apenas para prejudicar o contribuinte.

A autuação neste caso levou em conta a soma entre as operações de entrada e de saída, inclusive as não tributadas. Não houve, portanto, qualquer “valor agregado”, qualquer imposto sonegado, qualquer vantagem, por mínima que seja, que o contribuinte tenha auferido ou prejuízo que o fisco tenha sofrido.

A multa aplicada, ante a inexistência de tributo, pode ser considerada totalmente inconstitucional, pois fere o inciso IV do artigo 150 da Carta Magna.

Embora tal dispositivo faça referência apenas ao tributo quando proíbe sua cobrança com efeito confiscatório, a jurisprudência e a doutrina entendem perfeitamente aplicável às multas a mesma limitação. Nesse sentido é a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (DJU de 20 de agosto de 1999, página 341): “A multa, a pretexto de desestimular a reiteração de condutas infracionais, não pode atingir o direito de propriedade, cabendo ao Legislativo, com base no princípio da proporcionalidade, a fixação dos limites à sua imposição. Havendo margem na sua dosagem, a jurisprudência, com base no mesmo princípio, tem, no entanto, admitido a intervenção da autoridade judicial”.

O STF na ADI-MC 1075/DF (DJU 24 de novembro de 2006, página 59) decidiu no mesmo sentido, de que não é possível multa com efeito nitidamente confiscatório. Na Medida Cautelar, o voto do relator, ministro Celso de Mello, registra que: É inquestionável, senhores ministros, considerando-se a realidade normativa emergente do ordenamento constitucional brasileiro, que nenhum tributo — e, por extensão, nenhuma penalidade pecuniária oriunda do descumprimento de obrigações tributárias principais ou acessórias — poderá revestir-se de efeito confiscatório. Mais do que simples proposição doutrinária, essa asserção encontra fundamento em nosso sistema de direito constitucional positivo, que consagra,de modo explícito,a absoluta interdição de quaisquer práticas estatais de caráter confiscatório, com ressalva de situações especiais taxativamente definidas no próprio texto da Carta Política (artigo 243 e seu parágrafo único).

No livro Multas Tributárias (Editora Del Rey, Belo Horizonte, 2002, página 205) preleciona Ricardo Corrêa Dalla: “Os critérios para a fixação das multas tributárias devem obedecer aos padrões do princípio da razoabilidade, isto é, devem levar em conta também se a situação ocorrida foi agravada com dolo ou culpa”.

O Judiciário paulista, mesmo em primeira instância, já demonstrou que as multas não podem ser abusivas. A 9ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, em decisão de 21 de novembro de 2002 (DJE 4 de fevereiro de 2003) entendeu que: O Poder Legislativo não pode criar leis que firam os princípios gerais de direito e também os princípios implícitos na Constituição Federal da razoabilidade e da proporcionalidade. Do mesmo modo que não se deve admitir, somente porque existe lei, penas excessivas na esfera do Direito Penal — doutrina pacífica atualmente; da mesma maneira que não se pode aceitar a fixação de tributos de caráter confiscatório, que agridam o princípio da capacidade contributiva, porque abusivos e desproporcionais — pacífico na doutrina igualmente; enfim, se em qualquer ramo do direito não se pode acolher, passivamente, que o Estado legisle ferindo preceitos básicos do sistema de equilíbrio entre o seu poder e os direitos e garantias individuais, com maior razão, no contexto do direito administrativo o mesmo não pode se dar. A multa cobrada é nitidamente desproporcional à infração cometida e fere a capacidade de pagamento do autor. Por isso, vemos sentido em cancelar a aplicação da multa, considerando inconstitucional a lei que fixa seu valor, por desrespeitar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

A melhor doutrina tem declarado serem ilegais e inconstitucionais multas com efeitos confiscatórios. A matéria foi exaustivamente examinada e debatida no XXIV Simpósio de Direito Tributário promovido pelo Centro de Extensão Universitária em São Paulo, no ano 2000, do qual resultou a obra coletiva “Direitos Fundamentais do Contribuinte”, coordenada pelo professor Ives Gandra da Silva Martins (Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2000) e da qual podem ser extraídos os seguintes trechos: O alcance do preceito constitucional que veda o confisco é também extensivo às penalidades, pois sendo desdobramento da garantia do direito de propriedade (artigo 5º, XXII e artigo 170, II) proíbe o confisco ao estabelecer prévia e justa indenização, nos casos em que autoriza a desapropriação, não poderia ficar de fora do alcance dessa proteção constitucional a imposição de multas confiscatórias. O valor das multas a serem aplicadas deve ser proporcional ao valor objeto da obrigação tributária, sob pena de destruição do bem de onde surgirão os recursos para o Estado, à título de tributo, ou seja, a proporcionalidade da multa se impõe sob pena de destruição da fonte do tributo, que é o contribuinte.

O Supremo Tribunal Federal decidiu que mesmo existindo fraude, quando as punitições são rigorosas diante de dolo comprovado, não se aplicam penalidades confiscatórias. Na ADIN 551-RJ, vê-se que: “Ação Direta de Inconstitucionalidade — Parágrafos 2º e 3º do artigo 57 do ADCT do Estado do Rio de Janeiro, que dispõem sobre multa punitiva nas hipóteses de mora e sonegação fiscal. — Plausibilidade da irrogada inconstitucionalidade, face não apenas à impropriedade formal da via utilizada, mas também ao evidente caráter confiscatório das penalidades instituídas”. (RTJ-138/55)

Mas não é só. O decreto 46.674/2002, no artigo 72, § 3º, assegura ao contribuinte impugnar documento eletrônico transcrito pelo fisco, caso contenham erros. Esse artigo e o seguinte, o 73, admitem, portanto, a possibilidade de que arquivos eletrônicos sejam retificados. Isso demonstra, com clareza, que o fisco tem a obrigação de verificar tais arquivos e, constatada alguma irregularidade, omissão ou incorreção, intimar o contribuinte para corrigi-lo.

Pretenderam alguns intérpretes que se a obrigação acessória, quando não cumprida, fica convertida em principal para efeito de aplicação da penalidade, sua criação poderia dar-se por decreto ou ato administrativo. Mesmo antes da vigência da Constituição de 1988 esse entendimento chocava-se com o princípio da legalidade, cláusula pétrea conforme o § 4º do seu artigo 60.

O princípio da legalidade é absoluto e a administração pública não pode dele afastar-se em nenhuma hipótese, como se vê do artigo 37 do texto constitucional. Assim, tendo a obrigação sido instituída por uma portaria, sua exigência é absolutamente ilegal.

O artigo 7º do Código Tributário Nacional é claro ao determinar que a competência tributária é indelegável. Isso, obviamente, não se aplica apenas à obrigação principal, que é uma obrigação de dar, ou seja, de pagar o tributo, como também é aplicável às obrigações de fazer, que são as acessórias. Nesse sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal na ADI 1296, afirmando que: A nova Constituição da República revelou-se extremamente fiel ao postulado da separação de poderes, disciplinando, mediante regime de direito estrito, a possibilidade, sempre excepcional, de o Parlamento proceder a delegação legislativa externa em favor do Poder Executivo. A delegação legislativa externa, nos casos em que se apresente possível, só pode ser veiculada mediante resolução, que constitui o meio formalmente idôneo para consubstanciar, em nosso sistema constitucional, o ato de outorga parlamentar de funções normativas ao Poder Executivo. A resolução não pode ser validamente substituída, em tema de delegação legislativa, por lei comum, cujo processo de formação não se ajusta à disciplina ritual fixada pelo artigo 68 da Constituição. Não basta, para que se legitime a atividade estatal, que o poder público tenha promulgado um ato legislativo. Isso significa dizer que o legislador não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado — como o Poder Executivo — produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte parlamentar.

Já há jurisprudência considerando ilegal obrigação acessória criada por ato administrativo. Dentre inúmeras outras, podem ser citadas as seguintes decisões:

DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA ACESSÓRIA — DECLARAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO E TRIBUTOS FEDERAIS — DCTF — INSTRUÇÃO NORMATIVA 129/86 — SRF — PORTARIA 118/84 — MF — OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE — (...). Ofende o princípio da legalidade a instituição de obrigação tributária acessória mediante Instrução Normativa, por delegação do secretário da Receita Federal, através da Portaria 118/84, baixada pelo Ministério da Fazenda. Precedentes: AC 95.01.18755-1/BA, relatora juíza Eliana Calmon DJU/II de 09 de outubro de 1995, p. 68.250; REO 94.01.24826-5/BA, relatora juíza Eliana Calmon, DJU/II de 06 de outubro de 1994, p. 56.075. III. Apelação improvida. Remessa oficial julgada prejudicada." (TRF-1ª Região — Ap.Civel 123.128-3 — BA)
"TRIBUTÁRIO. DECLARAÇÃO DE CONTRIBUIÇÕES E TRIBUTOS FEDERAIS — DCTF. OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA. INSTRUÇÃO NORMATIVA 129/86. 1) Somente a lei pode criar obrigação. 2) A obrigação tributária acessória, consubstanciada em aplicação de multa àquele que não apresentar a DCTF, por intermédio de instrução normativa, é ilegal. Precedentes da Corte. Apelação a que se dá provimento". (TRF-5ª Região — AC 999.01.00.032761-2).

Souto Maior Borges, em trabalho publicado na Revista de Direito Tributário 23/24, “Legalidade Tributária e Categorias Obrigacionais”, assinala que:
Qualquer pretensão ao cumprimento de obrigações acessórias deverá estar submetida à regência de lei, e não de atos infralegais do Executivo, como os decretos regulamentares (...) Mas, há ainda um argumento final para confirmar a afirmação de que as obrigações acessórias devem ser instituídas por lei, e não mediante atos infralegais. É acertado afirmar-se que as expressões legalidade tributária e legislação tributária não são, no CTN, empregadas como sinônimos. Porque a lei, nos termos estipulados pelo CTN, artigo 96, apenas integra a legislação tributária, ao lado dos tratados e convenções internacionais, decretos e normas complementares.

Luiz Alberto Gurgel de Faria, em obra coletiva “Código Tributário Nacional Comentado” (Ed. Rev. Tribunais, 3ª. Ed. S.Paulo, 2005, pág. 551) diz que: A obrigação acessória decorre da legislação tributária (§ 2º), o que há de ser interpretado em harmonia com a Constituição Federal. Com efeito, nos termos do artigo 96 do CTN, a referida expressão compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes, de modo que, na concepção do legislador de 1966 (ano da promulgação do CTN), quaisquer desses atos poderiam instituir uma obrigação acessória. Ocorre que, na Carta Magna em vigor, o princípio da legalidade foi reforçado — ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5º, II) — demonstrando que as obrigações acessórias hão de ser criadas através de lei, formal e materialmente considerada, advinda, portanto, do Poder Legislativo, cabendo aos decretos e demais normas complementares o papel de explicitar a lei, viabilizando a sua melhor forma de execução, quando necessário.

Assim, a aplicação da multa no caso aqui mencionado é abusiva. Não se pode dar ao fisco o poder de aplicar multa ilimitada, ainda que a autuação seja legal. Quando se dá um poder sem limites, ou seja, um poder absoluto, abre-se a porta para todas as espécies de ilicitudes.

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